A histeria masculina
Ao
escutar um paciente histérico, especialmente um homem, imaginemo-lo
como um garotinho assustado, encolhido num canto do aposento, com os
olhos arregalados e protegendo a cabeça com as mãos, como que para
aparar a violência de um castigo eventual.
J.
-D. Nasio
Nos primórdios dos estudos da histeria, acreditava-se que se
tratava de uma doença feminina. Durante anos, foi dada muito pouca
atenção à histeria masculina. Hoje, a clínica comprova que ela é
quase tão freqüente nos homens quanto nas mulheres. O sofrimento
histérico da atualidade está mais discreto, raramente encontramos
“crises” como as de antigamente, chamadas de “estigmas
histéricos”, contudo, o momento histórico-cultural trouxe outras
mudanças na vida dos histéricos.
A sociedade contemporânea vive um momento de declínio das
referências masculinas. As instâncias paternas, estruturantes, que
constituíam a identidade masculina, sofreram uma queda.
A religião, a autoridade, a tradição, a lei paterna; estão
desmoronando. As religiões estão sofrendo críticas e
questionamentos. Foram descobertas inúmeras atrocidades que a Igreja
Católica Apostólica Romana cometia, em nome de Deus. O
Protestantismo que questionava os dogmas da Igreja Católica
Apostólica Romana vem abusando da ignorância dos fiés, absolvendo
criminosos, fazendo deles pastores e extorquindo dinheiro das massas
para aplicar em causa própria. São tantas mazelas mundanas em nome
da religião, que esta, como interdito de outrora, abriu espaço para
o perdão sem fronteiras. Se Deus perdoa tudo, por que se
responsabilizar por atos? Teria então, Deus, deixado de dar limites,
deixando de representar a interdição simbólica paterna e se
tornado um pai permissivo?
E o que falar das autoridades? Elas deveriam colocar ordem na
sociedade, não é mesmo? Os políticos que o povo escolhe para
representá-lo, em sua maioria, parecem corruptos. As leis só se aplicam aos menos favorecidos e pouca
punição existe para aqueles que não cumprem as regras da
sociedade. Guerras são travadas em nome do poder econômico. Chefes
de estado insistem em usurparem os bens naturais do planeta sem
pensar no futuro trágico de seus descendentes. Onde estão os
grandes líderes? Onde estão os referenciais?
Cazuza e Frejat com sua música “Ideologia”, exemplificam a angústia de sua
geração:
Meu
partido/É um coração partido/E as ilusões/Estão todas
perdidas/Os meus sonhos/foram todos vendidos/Tão barato que eu nem
acredito/Ah! Eu nem acredito.../Que aquele garoto que ia mudar o
mundo/Mudar o mundo/Freqüenta agora as festas do "Grand
Monde”.../Meus heróis morreram de overdose/Meus
inimigos estão no poder/Ideologia!/Eu quero uma pra
viver/Ideologia!/Eu quero uma pra viver.../O meu prazer agora é
risco de vida/Meu sex
and drugs não tem
nenhum rock'n'roll/Eu
vou pagar a conta do analista/Pra nunca mais ter que saber quem eu
sou/Ah! Saber quem eu sou.../Pois aquele garoto que ia mudar o
mundo/Mudar o mundo/agora assiste a tudo/Em cima do muro/Em cima do
muro...
O homem vem sofrendo as conseqüências daquilo que ele mesmo causou.
Sem referências, sofre as seqüelas do desmoronamento do seu mundo
simbólico. Está à deriva, sem a âncora edipiana, desamparado e
sofrendo. Esse sofrimento se deflagra na depressão, no pânico, no
tédio, na compulsão e nas famosas “personalidades limítrofes”.
(PEREIRA, apud GRASSI, 2004, p.13.)
Como então com tão poucos referenciais o homem contemporâneo se
estrutura? Será possível se tornarem viris, másculos, homens por
si sós? É possível comprar potência em uma farmácia? Esse é o
paradigma da masculinidade na atualidade.
A impotência do homem contemporâneo sem referências pode ser
expresso no fracasso sexual? Será que as promessas de realização
sexual através de uma droga licita resolverão o sentimento de
incompletude? Será que essa ferida exposta pode ser remediada?
E o que dizer sobre as mulheres contemporâneas? Será que elas
possuem sua parcela de contribuição para a falta de referências
masculinas? Para Mário Eduardo Costa Pereira no Prefácio ao livro
de Maria Virgínia Filomena Cremasco Grassi: “Psicopatologia da
disfunção erétil: A clínica psicanalítica do impotente”
trata-se de:
[...]
mais do que uma ânsia ou terror suscitados pela mulher
contemporânea, freqüentemente vividos como completa e não-castrada,
a impotência masculina nos tempos atuais tem ligação com o horror
suscitado pelo desejo sem mediação, de um mergulho sem limites no
oceano primordial feminino. O sintoma revela-se assim, mostra-o bem o
livro, como estratégia de proteção desse homem contemporâneo,
impotente de suas referências fálicas, contra o fascínio de um
fantasma de fusão regressiva na idealizada mulher,
devoradora/protetora dos pequenos homens desamparados.(PEREIRA, apud,
GRASSI, p.14)
Será que já estamos vivendo o “pós-patriarcado”? Será que a
preponderância do poder fálico está ruindo? As mulheres já se
tornaram 50% da força de trabalho, dividem os cuidados da casa e dos
filhos com seus parceiros, homens e mulheres tomam decisões por
consenso e o poder não está mais nas mãos do patriarca. As
mulheres estão se emancipando e com isso os paradigmas da nossa
sociedade estão mudando.
Essas são as mulheres da atualidade, são aquelas que ameaçam os
homens com uma conduta nada subserviente, elas são as mães, são as
esposas, as profissionais, são as batalhadoras... Completas?
Não-castradas? Não podemos afirmar... Entretanto sabemos que essas
mudanças ameaçam o universo masculino instituído ao longo dos
anos.
Que relação existe entre a falta de referências masculinas da
sociedade contemporânea, a histeria, a potência do homem e o
fracasso sexual?
A falta de referências masculinas da sociedade contemporânea só
reforça a falha identificatória característica da histeria. Para a
Psicanálise o processo identificatório é de suma importância, é
a partir do processo de internalização do “Outro”; do “Mundo”
que o sujeito se constitui e se transforma.
Freud em “A dissolução do Complexo de Édipo”, estabelece a
diferença entre “investimento do objeto” e “identificação”.
O Complexo de Édipo oferece à criança dois caminhos. Ela pode
colocar-se no lugar do pai, para poder ter sexualmente a mãe ou no
lugar da mãe para ter o pai. Na impossibilidade de realizar essas
escolhas, em função da interdição simbolizada pela “castração”,
os investimentos são substituídos pela introjeção da lei paterna
e da dessexualização das tendências libidinais existentes, dando
lugar ao superego.
Sobre isso descreve Freud (1924):
As
catexias de objeto são abandonadas e substituídas por
identificações. A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no
ego e aí forma o núcleo do superego, que assume a severidade do pai
e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o
ego do retorno da catexia libidinal. As tendências libidinais
pertencentes ao complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e
sublimadas (coisa que provavelmente acontece com toda transformação
em uma identificação) e em parte são inibidas em seu objetivo e
transformadas em impulsos de afeição. Todo o processo, por um lado,
preservou o órgão genital — afastou o perigo de sua perda — e,
por outro, paralisou-o — removeu sua função. Esse processo
introduz o período de latência, que agora interrompe o
desenvolvimento sexual da criança.
Não
vejo razão para negar o nome de ‘repressão’ ao afastamento do
ego diante do complexo de Édipo, embora repressões posteriores
ocorram pela maior parte com a participação do superego que, nesse
caso, está apenas sendo formado. O processo que descrevemos é,
porém, mais que uma repressão. Equivale, se for idealmente levado a
cabo, a uma destruição e abolição do complexo. Plausivelmente
podemos supor que chegamos aqui à linha fronteiriça — nunca bem
nitidamente traçada — entre o normal e o patológico. Se o ego, na
realidade, não conseguiu muito mais que uma repressão do complexo,
este persiste em estado inconsciente no id e manifestará mais tarde
seu efeito patogênico. (FREUD, 1924, p.05)
Segundo Grassi (2004) no “Estádio do espelho” a criança se
identifica com o que supõe ser o desejo da mãe, e se torna o falo
imaginário dela, preenchendo o vazio da mesma. Com a entrada do pai,
como rival à simbiose entre mãe e filho, a criança abandona a
posição de assujeito e se torna um sujeito desejante. O interdito
paterno abre a possibilidade para o indivíduo ter prazer, no caso
dos meninos, a promessa de virilidade no tempo certo com as mulheres
certas, permitidas. Chegamos assim, ao entendimento de que se a
castração não for bem sucedida encontraremos uma falha
identificatória.
Voltando a questão da relação existente entre a falta de
referências masculinas da sociedade contemporânea e a histeria,
esta seria então, a resolução do complexo de Édipo com a entrada
do interdito paterno, a castração.
Como relacionar essa questão à potência do homem? Para Grassi
(2004) citando Lacan:
Problemas
com a castração remetem-nos diretamente à psicopatologia, pois em
todas as neuroses, e principalmente na histeria, considerada a
principal neurose desde Freud, a questão é com a castração. Em
Lacan (1972-1973): “Para o homem, a menos que haja castração,
quer dizer, alguma coisa que diga não à função fálica, não há
nenhuma chance de que ele goze do corpo da mulher, ou, dito de outro
modo, que ele faça o amor.”(GRASSI, 2004, p.136)
Para Nasio (1991), o histérico vive um paradoxo na sua vida sexual,
de um lado vive seu corpo não-genital com uma carga erótica
excessiva e dolorosa e por outro lado sua zona genital apresenta uma
inibição. Em decorrência desse paradoxo, a vida sexual do
histérico, é marcada pela insatisfação. A angústia de perder seu
falo aumenta proporcionalmente à dúvida de ser homem ou mulher.
Quanto maior for a dúvida quanto a sua identidade sexual maior será
o apego ao falo e maior será a angústia. Em momentos de muita
angústia aparecem os sintomas causadores do sofrimento.
A disfunção erétil pode ser um sintoma defensivo contra a idéia
da relação sexual. Anestesiando seu pênis e “falicizando”
globalmente seu corpo ele torna sua zona genital esvaziada e
desinvestida de afeto, enquanto o seu corpo não-genital se excita e
se organiza como um poderoso falo, narcísico, sedutor e sofrido. O
histérico abre mão do falo para sê-lo. Ele se torna no falo que
faltava em sua mãe, na fantasia de castração. Esse homem histérico
sofre por ter sido transformado no falo do “Outro” castrado.
A falta de ereção é uma defesa. Uma renúncia ao gozo da
penetração. A penetração é uma ameaça ao falo. A impotência
surge nesse momento, no momento da reatualização, em que o homem
sente o medo de desintegrar seu ego caso perca seu falo na
penetração, contudo, ele precisa penetrar a mulher desejada, a
mulher desejante e perigosa como na sua fantasia infantil
inconsciente, diante da mãe castrada. A angústia de castração é
então convertida em inibição sexual e insatisfação, da qual ele
se utiliza para aplacar a ameaça de sucumbir ao gozo.
Como ele não aceita a castração, fica impossibilitado de realizar
identificações masculinas e femininas, assim sendo ele permanece
psiquicamente bissexual. O gozo que o remete ao proibido apresenta-se
sob a marca da impotência que, pode ou não, se manifestar como uma
disfunção erétil.
Todo histérico é impotente? Cabe aqui outra questão. O que é ser
impotente?
Ribeiro Alves (2001) refere-se à equação simbólica psicanalítica
para ilustrar a “potência” masculina, para além do desempenho
peniano:
A
potência masculina, para a psicanálise, não se reduz à força
mecânica do membro masculino; ela se coloca, sobre tudo, na equação
simbólica: pênis = falo. A valorização do pênis-falo dá-se a
partir da suposição da castração da menina, ou seja, de um não
reconhecimento da vagina como outro órgão sexual. Mas isto custa um
preço ao menino – o preço da ameaça de castração.
A impotência não se resume a uma disfunção erétil. A impotência
fala de uma falta, de uma insatisfação que caracteriza e determina
toda a vida do neurótico. A impotência é a sensação de “nada
posso fazer”. O que seria isso? Seria o sofrimento diante do desejo
do outro que ele não pode satisfazer já que o gozo para ele é
proibido e assustador. Então todo histérico se sente impotente
mesmo que não tenha uma disfunção erétil. Homens ou mulheres impotentes perante o paradoxo de sua
existência doentia, diante da assustadora lembrança que o recalque
deixou escapar. O gozo incestuoso reprimido encontrando destino no
gozo sintomático escolhido.
Marly Lopes de Morais
Referências:
1 - ALVES
apud GRASSI, 2004, p. 109.
2 -
NASIO, 1991, p. 60.
3 -
NASIO, 1991, p. 44.
4 - NASIO, 1991, p. 44.
5 - MURARO, 2000, p. 181 à 191.
6 - Personalidade limítrofe é o mesmo que personalidade borderline.
Pelo DSM.IV (Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças
Mentais) da Associação Norte-Americana de Psiquiatria, trata-se de
um transtorno de Personalidade caracterizado por um padrão
comportamental de instabilidade nos relacionamentos interpessoais,
na auto-imagem e nos afetos. Há uma acentuada impulsividade, a qual
começa no início da idade adulta e persiste indefinidamente.
7 - Letra de “Ideologia”, de autoria de Cazuza e Frejat, música do
Álbum com o mesmo nome, gravado pela Poligram em 1998.
8 - Mário Eduardo Costa Pereira no Prefácio ao livro de Maria Virgínia
Filomena Cremasco Grassi: “Psicopatologia da disfunção erétil:
A clínica psicanalítica do impotente” fala com propriedade sobre
a crise de identidade masculina na contemporaneidade.
9 - NASIO, 1991, p.77.